Pesquisas Inconformadas

quinta-feira, agosto 24, 2006

Do que de melhor se fez em poesia em Portugal

Adão e Eva

Olhámo-nos um dia,
E cada um de nós sonhou que achara
O par que a alma e a cara lhe pedia.

– E cada um de nós sonhou que o achara...

E entre nós dois
Se deu, depois, o caso da maçã e da serpente,
... Se deu, e se dará continuamente:

Na palma da tua mão,
Me ofertaste, e eu mordi, o fruto do pecado.

Meu nome é Adão...

E em que furor sagrado
Os nossos corpos nus e desejosos
Como serpentes brancas se enroscaram,
Tentando ser um só!

Ó beijos angustiados e raivosos
Que as nossas pobres bocas se atiraram
Sobre um leito de terra, cinza e pó!

Ó abraços que os braços apertaram,
Dedos que se misturaram!

Ó ânsia que sofreste, ó ânsia que sofri,
Sede que nada mata, ânsia sem fim!
– Tu de entrar em mim,
Eu de entrar em ti.

Assim toda te deste,
E assim todo me dei:

Sobre o teu longo corpo agonizante,
Meu inferno celeste,
Cem vezes morri, prostrado...
Cem vezes ressuscitei
Para uma dor mais vibrante
E um prazer mais torturado.

E enquanto as nossas bocas se esmagavam,
E as doces curvas do teu corpo se ajustavam
Às linhas fortes do meu,
Os nossos olhos muito perto, imensos,
No desespero desse abraço mudo,
Confessaram-se tudo!
... Enquanto nós pairávamos, suspensos
Entre a terra e o céu.

Assim as almas se entregaram,
Como os corpos se tinham entregado,
Assim duas metades se amoldaram
Ante as barbas, que tremeram,
Do velho Pai desprezado!

E assim Eva e Adão se conheceram:

Tu conheceste a força dos meus pulsos,
A miséria do meu ser,
Os recantos da minha humanidade,
A grandeza do meu amor cruel,
Os veios de oiro que o meu barro trouxe...

Eu, os teus nervos convulsos,
O teu poder,
A tua fragilidade
Os sinais da tua pele,
O gosto do teu sangue doce...

Depois...

Depois o quê, amor? Depois, mais nada,
– Que Jeová não sabe perdoar!

O Arcanjo entre nós dois abrira a longa espada...

Continuamos a ser dois,
E nunca nos pudemos penetrar!

José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira, (Vila do Conde, 17 de Setembro de 1901 — Vila do Conde, 22 de Dezembro de 1969), escritor português, viveu grande parte da sua vida na cidade de Portalegre (de 1928 a 1967).

Fundou em 1927 a revista Presença, que veio a marcar o segundo modernismo português e de que Régio foi o principal impulsionador e ideólogo. Para além da contribuição para esta revista, ainda escreveu para vários jornais, como por exemplo o Diário de Notícias e o Comércio do Porto. Fez também frente ao Estado Novo, tendo sido membro do Movimento de Unidade Democrática (MUD) e apoiado a candidatura do General Humberto Delgado. Como escritor, José Régio dedicou-se ao romance, ao teatro, à poesia e ao ensaio. A sua obra é fortemente marcada por conflitos entre Deus e o Homem, o indivíduo e a sociedade, numa análise crítica da solidão e das relações humanas. Como ensaísta, dedicou-se ao estudo de Camões e Florbela Espanca, entre outros.

http://pt.wikipedia.org/wiki/José_Régio

Mais em

Enciclopédia Universal Multimédia On-Line

http://www.universal.pt/scripts/hlp/hlp.exe/artigo?cod=2_95

Sem comentários: